Vida
Poema de Sebastião da Gama
Hoje, cá dentro, houve festa...
Alcatifei-me de veludo azul, ...
fiz pintar a Ternura os meus salões,
e pus cortinas de tule...
Mas não chamei grandes orquestras
nem um clarim, a proclamá-la:
mandei tocar, em mim,
uma música assim de procissão
que levou os meus sentidos
a nem sequer se sentirem, de embevecidos...
Hoje, cá dentro, houve festa...
E, se houve festa e veludos,
e musica azul, e tudo
quanto digo,
foi somente porque a Graça
desceu hoje a visitar-me.
E eu, que vivo de Infinito
as raras vezes que vivo;
eu, que me sinto cativo
no pouco espaço que habito,
onde a presença de dois,
por ser demais, me embaraça,
deixei logo o meu lugar,
para dar lugar à Graça.
Não tinha pés: tinha passos;
não tinha boca: era beijos;
não tinha voz: era como
se o folhado e a maresia
se tivessem combinado
pra cantar «Ave, Maria...»
Foi então que vivi; então que vi
os poucos metros que vão
da minha Serra às Estrelas:
é que eu, sendo tão pequeno
que nem às vezes me encontro,
andava ali a pairar,
e o meu fim estava nelas
e o meu princípio no Mar.
A Graça, cá dentro, era
a varinha de condão
que me guiava no Ar.
E que bem me conduzia!
Parecia que eu sentia
as mesmas ânsias e a alegria
da Noite quando, no ventre,
já sente os gritos do Dia.
E eu me vi (que não sei bem
se era eu ou se era a Graça
quem p’los meus olhos olhava);
e eu me vi, que me tomava
em tons de rosa esmaiada
—barra da saia da Tarde
que ainda bem não morreu
e já de si tem saudades;
e fui murmúrio do Mar
que reza o que eu lhe ensinei;
e fui perfume exalado
dos matos da minha Serra
— perfume que, modelado
às formas que tens, sem tê-las,
mostrou teu corpo perfeito:
esse perfume que eu era
desenhava-te o perfil;
por olhos, tinhas Estrelas;
meu carinho de pensar-te
era a curva do teu peito.
E a minha varinha maga
do perfume fez um grito
da Serra, ébria de si;
e eu, nesse grito, subi;
bati às portas do Céu,
mas era cedo demais
e caí.
Para pairar, em poalha
que não é oiro, mas sim
a palavra com que Deus
fechou-me as portas do Céu;
beijo a minha criação
quando beijo a minha Serra;
sou passadeira de mim
e nego, na Luz que sou,
que seja feito de terra.
Ai quem me dera morrer!
Liberto do que não sou,
viver a única vida
pra que Deus me destinou!
Dá-me a vida que me mate, Senhor!
Fica-me dentro pra sempre,
a guiar-me pelo Além!
E tu perdoa, se eu morro,
que é p’ra nascer, minha Mãe!
Poema de Sebastião da Gama
Hoje, cá dentro, houve festa...
Alcatifei-me de veludo azul, ...
fiz pintar a Ternura os meus salões,
e pus cortinas de tule...
Mas não chamei grandes orquestras
nem um clarim, a proclamá-la:
mandei tocar, em mim,
uma música assim de procissão
que levou os meus sentidos
a nem sequer se sentirem, de embevecidos...
Hoje, cá dentro, houve festa...
E, se houve festa e veludos,
e musica azul, e tudo
quanto digo,
foi somente porque a Graça
desceu hoje a visitar-me.
E eu, que vivo de Infinito
as raras vezes que vivo;
eu, que me sinto cativo
no pouco espaço que habito,
onde a presença de dois,
por ser demais, me embaraça,
deixei logo o meu lugar,
para dar lugar à Graça.
Não tinha pés: tinha passos;
não tinha boca: era beijos;
não tinha voz: era como
se o folhado e a maresia
se tivessem combinado
pra cantar «Ave, Maria...»
Foi então que vivi; então que vi
os poucos metros que vão
da minha Serra às Estrelas:
é que eu, sendo tão pequeno
que nem às vezes me encontro,
andava ali a pairar,
e o meu fim estava nelas
e o meu princípio no Mar.
A Graça, cá dentro, era
a varinha de condão
que me guiava no Ar.
E que bem me conduzia!
Parecia que eu sentia
as mesmas ânsias e a alegria
da Noite quando, no ventre,
já sente os gritos do Dia.
E eu me vi (que não sei bem
se era eu ou se era a Graça
quem p’los meus olhos olhava);
e eu me vi, que me tomava
em tons de rosa esmaiada
—barra da saia da Tarde
que ainda bem não morreu
e já de si tem saudades;
e fui murmúrio do Mar
que reza o que eu lhe ensinei;
e fui perfume exalado
dos matos da minha Serra
— perfume que, modelado
às formas que tens, sem tê-las,
mostrou teu corpo perfeito:
esse perfume que eu era
desenhava-te o perfil;
por olhos, tinhas Estrelas;
meu carinho de pensar-te
era a curva do teu peito.
E a minha varinha maga
do perfume fez um grito
da Serra, ébria de si;
e eu, nesse grito, subi;
bati às portas do Céu,
mas era cedo demais
e caí.
Para pairar, em poalha
que não é oiro, mas sim
a palavra com que Deus
fechou-me as portas do Céu;
beijo a minha criação
quando beijo a minha Serra;
sou passadeira de mim
e nego, na Luz que sou,
que seja feito de terra.
Ai quem me dera morrer!
Liberto do que não sou,
viver a única vida
pra que Deus me destinou!
Dá-me a vida que me mate, Senhor!
Fica-me dentro pra sempre,
a guiar-me pelo Além!
E tu perdoa, se eu morro,
que é p’ra nascer, minha Mãe!
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