segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

A VERDADE ERA BELA








A Verdade era bela .
Poema de Sebastião da Gama

A verdade era bela,
como vinha nos livros. ...
À beirinha das águas
a verdade era bela.

Os que deram por ela
abriram-se e contaram
que a verdade era bela.
Quase todos se riram.

Os que punham nos livros
que a verdade era bela,
muito mais do que os outros.

A verdade era bela
mas doía nos olhos
mas doía nos lábios
mas doía no peito
dos que davam por ela.
 

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

PRESÉPIO


O poema que apresento tem quase 60 anos. Foi produzido em 24 de Dezembro de 1950. Seu autor: Sebastião da Gama. Deste Poema, projeta-se toda a sensibilidade, lirismo do poeta azeitonense, como se fosse uma tela de várias tonalidades aliadas ao seu espírito franciscano , que imana da Arrábida , a sua Serra-Mãe .O poema teve publicação póstuma, no livro, em Pelo sonho é que vamos (1953).

Presépio
...
Nuzinho sobre as palhas,
nuzinho - e em Dezembro!
Que pintores tão cruéis,
Menino, te pintaram!

O calor do seu corpo,
pra que o quer tua Mãe?
Tão cruéis os pintores!
(Tão injustos contigo,
Senhora!)

Só a vaca e a mula
com seu bafo te aquecem...

- Quem as pôs na pintura?

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

CÉU


Céu
Poema de Sebastião da Gama.

Tenho uma sede imensa,
mas não é de água…...

Tenho uma sede imensa de beber
os soluços do Sol quando declina,
as carícias azuis do Luar de Agosto,
os tons rosa da Tarde que se fina…

É que eu seria poeta, se os bebesse…
Não mais seria o cego de olhos limpos;
esse que viu a água e a não tocou,
pelo estranho pudor da sua boca
que um dia blasfemou.

.E, se eu pudesse beber
esses longes de mim que vejo e quero,
em espasmos havia de os mudar
e, num desejo nunca satisfeito,
iria possuir-te, ó Mar!

Havia de cair, num beijo sobre ti;
despir as minhas vestes de serrano,
tirar de mim aquilo que é humano,
E confundir-me em ti.

Gritem depois, embora, que eu morri;
alegre o Mundo o alívio do meu peso;
- que um dia o Sol há-de surgir mais cedo
e o bom menino de olhos azuis,
de quem sou fraco arremedo,
há-de nascer, ó Mar, da nossa noite de Amor!

E tu, Menina que eu chamava,
Menina que eu chamava e encontrei
Mas abrasada no Amor divino
- tu hás-de ver então que o Céu que idealizas
É o olhar azul desse menino.

.In “Serra - Mãe”

Ed. Ática – 1957

CREPUSCULAR


Crepuscular
Poema de Sebastião da Gama

Já não são horas, meu Amor...
A hora...
passou
em que era grato a gente amar.
É um querer de Irmão este de agora.
Nem a Tarde
é já o cravo rubro de inda há pouco:
é um murmúrio quase... um lírio inexistente
dulcificando as coisas, perfumando-as
de carinhos...

Não é a hora, Amor.
Agora
deixa sorrir em nós a peregrina
ternura da Paisagem.
Não desprendas as mãos
das minhas...

Abandona-as, mas castas como berços...
E beija-me na testa...
Quando a Noite
mansa vier vindo,
Amor, beija de manso a minha testa...
De manso, meu Amor...
Como se o lírio da Tarde se fechasse...

Sebastião da Gama



CARAVELA


Caravela
Poema de Sebastião da Gama

Não sabe já, perdida caravela,
não sabe a minha voz o que demanda. ...
(Será talvez sem rumo andar perdida…)
Ainda bem, que assim não chega nunca;
a virgem ansiedade da partida
lhe anima a toda a hora a vela panda.

Chegar? P’ra quê, se era descer as velas
E era baixar o ferro, era parar?...
Antes errar, inciente de que lado
ficam agora as águas percorridas
e de que lado o Mar por navegar.

Caravela perdida, minha voz,
eia! Retumba o ar de teus acentos!
Pinta com tua cor todos os ventos!
Rompe!, vibra!, estremece! __ Ah! minha voz!,
e não quebres o ritmo, e não intentes
perguntar por que cantas, porque cantas

SINAL


SINAL
Poema de Sebastião da Gama

Quanto amor me tens,
...
com amor te pago
- Trago-te no dedo,
num anel que trago.

Num anel redondo,
todo de oiro fino,
que é o teu sinal,
que é o teu destino.

Este anel me basta
para bater-te à porta.
Truz! truz! truz! – na rua
como o frio corta!

Como a chuva cai,
como o vento mia!
Mas abriste logo,
que eu é que batia.

(Que outro anel tivera
som que te chamasse?)
Já teu vinho bebo,
para que o frio me passe;


já na tua cama
me aconchego e deito;
já te chamo esposa,
peito contra peito.

como tudo é simples,
como é tudo imenso!
É“ mistério enorme,
de um anel suspenso!

E eis, na tua mão,
num anel igual,
brilha o teu destino,
luz o meu sinal.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

POEMA DA MINHA ESPERANÇA


Poema da Minha Esperança
De Sebastião da Gama

Que bom ter o relógio adiantado!...
A gente assim, por saber ...
que tem sempre tempo a mais,
não se rala nem se apressa.

O meu sorriso de troça,
Amigos!,
quando vejo o meu relógio
com três quartos de hora a mais!...

Tic-tac... Tic-tac...
(Lá pensa ele
que é já o fim dos meus dias.)

Tic-tac...
(Como eu rio, cá p'ra dentro,
de esta coisa divertida:
ele a julgar que é já o resto
e eu a saber que tenho sempre mais
três quartos de hora de vida.)

Serra-Mãe (1945)

À MEMÓRIA DE ALBERTO CAEIRO






À Memória de Alberto Caeiro
Poema de Sebastião da Gama

Agora sim, que fechei o livro de Poesia.
O Sol deixou de ser uma metáfora para ser o Sol. ...
Os sentimentos deixaram de ser apenas palavras.
Tudo é de verdade, agora que fechei o livro de Poesia e olhei de frente quanto existe.

Porque diabo me ensinaram a ler?
(Se não soubesse ler nem sequer fechava o livro, insatisfeito porque o não tinha aberto.)
Porque me não deixaram sempre agreste e criança?
As minhas leituras seriam todas fora dos livros.
Havia de olhar para tudo com uma alegria tão grande, com uma virgindade tão grande, que até Deus sorriria contente de ter feito o Mundo...
 

DA MINHA JANELA VÊ-SE A POESIA





Sem Título 2.

Da minha janela
vê-se a Poesia.
Não te digo, não,...
se é bonita ou feia,
se é azul ou branca,
nem que formas tem.
Queres conhecê-la?
Deixa o teu bordado,
vem para o meu lado,
que já podes vê-la
com teus próprios olhos.

Da minha janela
vê-se a Poesia...
Outro que te diga
se é bonita ou feia.

Sebastião da Gama

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

CONDIÇÃO


Condição
Poema de Sebastião da Gama

Constrói ao menos
qualquer coisa efémera ....
Pois mais não podes ser,
sê ao menos efémero .

Grava os passos na areia,
desenha sobre a estrada
teu vulto.
É melhor do que nada .

a desfazer-te o rastro
virá o Mar, é certo .
Vira, é certo , a Noite
beber a tua sombra .

Efémero ? Serás ...
Mas presente
no Mar, eternamente;
na Noite, para sempre .

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

SONETO DO TEMPO PERDIDO


Soneto do Tempo Perdido
Poema de Sebastião da Gama

Passo às vezes os dias distraído
de mim, vou ao café, vou conversar,...
e não paro um segundo a escutar
o que terá cá dentro acontecido .

Vivo a vida dos outros, esquecido
de que o meu Fado é mais do que passar.
Ah ! bem sei que vim para contar
a minha alma plena de sentido !

Muito me dói o que fugi então ! ...
- Pra mim próprio me pus costas-voltadas,
e, tudo que em mim foi, foi tudo em vão.

Quanta coisa foi quase pequenina
( e surgira pra ser das celebradas )
só por eu ter burlado a minha Sina !



O IMPOSTOR







O Impostor
Poema de Sebastião da Gama

Lá porque eu tinha os loiros na cabeça
(os loiros que Ele deixara...
cair ao chão de onde sou ),
deram-me abraços, na praça,
chamaram-me poeta e até fizeram discursos ...

Ele, do Alto , sorriu
e ria
daquela tragicomédia
dos meus ares de arlequim.

Mas consegui fugir ao seu olhar ...

Por fim,
acreditava, tanto como os outros,
que as palmas eram para mim .