segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

A VERDADE ERA BELA








A Verdade era bela .
Poema de Sebastião da Gama

A verdade era bela,
como vinha nos livros. ...
À beirinha das águas
a verdade era bela.

Os que deram por ela
abriram-se e contaram
que a verdade era bela.
Quase todos se riram.

Os que punham nos livros
que a verdade era bela,
muito mais do que os outros.

A verdade era bela
mas doía nos olhos
mas doía nos lábios
mas doía no peito
dos que davam por ela.
 

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

PRESÉPIO


O poema que apresento tem quase 60 anos. Foi produzido em 24 de Dezembro de 1950. Seu autor: Sebastião da Gama. Deste Poema, projeta-se toda a sensibilidade, lirismo do poeta azeitonense, como se fosse uma tela de várias tonalidades aliadas ao seu espírito franciscano , que imana da Arrábida , a sua Serra-Mãe .O poema teve publicação póstuma, no livro, em Pelo sonho é que vamos (1953).

Presépio
...
Nuzinho sobre as palhas,
nuzinho - e em Dezembro!
Que pintores tão cruéis,
Menino, te pintaram!

O calor do seu corpo,
pra que o quer tua Mãe?
Tão cruéis os pintores!
(Tão injustos contigo,
Senhora!)

Só a vaca e a mula
com seu bafo te aquecem...

- Quem as pôs na pintura?

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

CÉU


Céu
Poema de Sebastião da Gama.

Tenho uma sede imensa,
mas não é de água…...

Tenho uma sede imensa de beber
os soluços do Sol quando declina,
as carícias azuis do Luar de Agosto,
os tons rosa da Tarde que se fina…

É que eu seria poeta, se os bebesse…
Não mais seria o cego de olhos limpos;
esse que viu a água e a não tocou,
pelo estranho pudor da sua boca
que um dia blasfemou.

.E, se eu pudesse beber
esses longes de mim que vejo e quero,
em espasmos havia de os mudar
e, num desejo nunca satisfeito,
iria possuir-te, ó Mar!

Havia de cair, num beijo sobre ti;
despir as minhas vestes de serrano,
tirar de mim aquilo que é humano,
E confundir-me em ti.

Gritem depois, embora, que eu morri;
alegre o Mundo o alívio do meu peso;
- que um dia o Sol há-de surgir mais cedo
e o bom menino de olhos azuis,
de quem sou fraco arremedo,
há-de nascer, ó Mar, da nossa noite de Amor!

E tu, Menina que eu chamava,
Menina que eu chamava e encontrei
Mas abrasada no Amor divino
- tu hás-de ver então que o Céu que idealizas
É o olhar azul desse menino.

.In “Serra - Mãe”

Ed. Ática – 1957

CREPUSCULAR


Crepuscular
Poema de Sebastião da Gama

Já não são horas, meu Amor...
A hora...
passou
em que era grato a gente amar.
É um querer de Irmão este de agora.
Nem a Tarde
é já o cravo rubro de inda há pouco:
é um murmúrio quase... um lírio inexistente
dulcificando as coisas, perfumando-as
de carinhos...

Não é a hora, Amor.
Agora
deixa sorrir em nós a peregrina
ternura da Paisagem.
Não desprendas as mãos
das minhas...

Abandona-as, mas castas como berços...
E beija-me na testa...
Quando a Noite
mansa vier vindo,
Amor, beija de manso a minha testa...
De manso, meu Amor...
Como se o lírio da Tarde se fechasse...

Sebastião da Gama



CARAVELA


Caravela
Poema de Sebastião da Gama

Não sabe já, perdida caravela,
não sabe a minha voz o que demanda. ...
(Será talvez sem rumo andar perdida…)
Ainda bem, que assim não chega nunca;
a virgem ansiedade da partida
lhe anima a toda a hora a vela panda.

Chegar? P’ra quê, se era descer as velas
E era baixar o ferro, era parar?...
Antes errar, inciente de que lado
ficam agora as águas percorridas
e de que lado o Mar por navegar.

Caravela perdida, minha voz,
eia! Retumba o ar de teus acentos!
Pinta com tua cor todos os ventos!
Rompe!, vibra!, estremece! __ Ah! minha voz!,
e não quebres o ritmo, e não intentes
perguntar por que cantas, porque cantas

SINAL


SINAL
Poema de Sebastião da Gama

Quanto amor me tens,
...
com amor te pago
- Trago-te no dedo,
num anel que trago.

Num anel redondo,
todo de oiro fino,
que é o teu sinal,
que é o teu destino.

Este anel me basta
para bater-te à porta.
Truz! truz! truz! – na rua
como o frio corta!

Como a chuva cai,
como o vento mia!
Mas abriste logo,
que eu é que batia.

(Que outro anel tivera
som que te chamasse?)
Já teu vinho bebo,
para que o frio me passe;


já na tua cama
me aconchego e deito;
já te chamo esposa,
peito contra peito.

como tudo é simples,
como é tudo imenso!
É“ mistério enorme,
de um anel suspenso!

E eis, na tua mão,
num anel igual,
brilha o teu destino,
luz o meu sinal.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

POEMA DA MINHA ESPERANÇA


Poema da Minha Esperança
De Sebastião da Gama

Que bom ter o relógio adiantado!...
A gente assim, por saber ...
que tem sempre tempo a mais,
não se rala nem se apressa.

O meu sorriso de troça,
Amigos!,
quando vejo o meu relógio
com três quartos de hora a mais!...

Tic-tac... Tic-tac...
(Lá pensa ele
que é já o fim dos meus dias.)

Tic-tac...
(Como eu rio, cá p'ra dentro,
de esta coisa divertida:
ele a julgar que é já o resto
e eu a saber que tenho sempre mais
três quartos de hora de vida.)

Serra-Mãe (1945)

À MEMÓRIA DE ALBERTO CAEIRO






À Memória de Alberto Caeiro
Poema de Sebastião da Gama

Agora sim, que fechei o livro de Poesia.
O Sol deixou de ser uma metáfora para ser o Sol. ...
Os sentimentos deixaram de ser apenas palavras.
Tudo é de verdade, agora que fechei o livro de Poesia e olhei de frente quanto existe.

Porque diabo me ensinaram a ler?
(Se não soubesse ler nem sequer fechava o livro, insatisfeito porque o não tinha aberto.)
Porque me não deixaram sempre agreste e criança?
As minhas leituras seriam todas fora dos livros.
Havia de olhar para tudo com uma alegria tão grande, com uma virgindade tão grande, que até Deus sorriria contente de ter feito o Mundo...
 

DA MINHA JANELA VÊ-SE A POESIA





Sem Título 2.

Da minha janela
vê-se a Poesia.
Não te digo, não,...
se é bonita ou feia,
se é azul ou branca,
nem que formas tem.
Queres conhecê-la?
Deixa o teu bordado,
vem para o meu lado,
que já podes vê-la
com teus próprios olhos.

Da minha janela
vê-se a Poesia...
Outro que te diga
se é bonita ou feia.

Sebastião da Gama

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

CONDIÇÃO


Condição
Poema de Sebastião da Gama

Constrói ao menos
qualquer coisa efémera ....
Pois mais não podes ser,
sê ao menos efémero .

Grava os passos na areia,
desenha sobre a estrada
teu vulto.
É melhor do que nada .

a desfazer-te o rastro
virá o Mar, é certo .
Vira, é certo , a Noite
beber a tua sombra .

Efémero ? Serás ...
Mas presente
no Mar, eternamente;
na Noite, para sempre .

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

SONETO DO TEMPO PERDIDO


Soneto do Tempo Perdido
Poema de Sebastião da Gama

Passo às vezes os dias distraído
de mim, vou ao café, vou conversar,...
e não paro um segundo a escutar
o que terá cá dentro acontecido .

Vivo a vida dos outros, esquecido
de que o meu Fado é mais do que passar.
Ah ! bem sei que vim para contar
a minha alma plena de sentido !

Muito me dói o que fugi então ! ...
- Pra mim próprio me pus costas-voltadas,
e, tudo que em mim foi, foi tudo em vão.

Quanta coisa foi quase pequenina
( e surgira pra ser das celebradas )
só por eu ter burlado a minha Sina !



O IMPOSTOR







O Impostor
Poema de Sebastião da Gama

Lá porque eu tinha os loiros na cabeça
(os loiros que Ele deixara...
cair ao chão de onde sou ),
deram-me abraços, na praça,
chamaram-me poeta e até fizeram discursos ...

Ele, do Alto , sorriu
e ria
daquela tragicomédia
dos meus ares de arlequim.

Mas consegui fugir ao seu olhar ...

Por fim,
acreditava, tanto como os outros,
que as palmas eram para mim .
 




sábado, 29 de novembro de 2014

SENHORA DA LAPA

A SERRA DA ARRÁBIDA

CREPUSCULAR

PORTA ABERTA



Porta Aberta
Poema de Sebastião da Gama
Hoje, não !
Deixem-me estar aqui, sossegadinho,...
tomando o gosto às minhas Alegrias .
Há tantos outros dias
em que podem chamar-me !
E tantos, tantos,
em que tenho desejo de me dar
( Mais que desejo : sede ... )
sem que ninguém repare nos meus olhos
cansados de pedir !
Amanhã ou depois -- quando quiserem ...
Hoje, deixem-se só,
na paria , recolhido .
É tão grande este dia para mim ! ...
Mas se eu ouvir chorar ?
mas se eu vir criancinhas
com as mãos estendidas e uma queixa
na palidez precoce de um sorriso ?
Mas se homens tristes ...

Perdoai ! perdoai !, que me esquecia
de vós.
como se para vós o dia de hoje
não fosse um dia igual aos outros dias !

CONFIDÊNCIA

AO SOL POSTO

ODE A UMA VIRGEM

O FOLHADO

VERSOS PARA EU DIZER DE JOELHOS

FORMA

DIA DE FINADOS

IMAGEM

ELEGIA DESTA MANHÃ

VERSOS AO MAR

SERRA-MÃE

NUPCIAL

ROSAS

ANUNCIAÇÃO

O SONHO

terça-feira, 25 de novembro de 2014

PORTA ABERTA




Porta Aberta
Poema de Sebastião da Gama

Hoje, não !
Deixem-me estar aqui, sossegadinho,...
tomando o gosto às minhas Alegrias .
Há tantos outros dias
em que podem chamar-me !
E tantos, tantos,
em que tenho desejo de me dar
( Mais que desejo : sede ... )
sem que ninguém repare nos meus olhos
cansados de pedir !
Amanhã ou depois -- quando quiserem ...
Hoje, deixem-se só,
na paria , recolhido .
É tão grande este dia para mim ! ...
Mas se eu ouvir chorar ?
mas se eu vir criancinhas
com as mãos estendidas e uma queixa
na palidez precoce de um sorriso ?
Mas se homens tristes ...

Perdoai ! perdoai !, que me esquecia
de vós.
como se para vós o dia de hoje
não fosse um dia igual aos outros dias ! ...



sexta-feira, 21 de novembro de 2014

BANDEIRA ALEGRE






Bandeira Alegre
Poema de Sebastião da Gama

Vou fincar, içada ao alto
como qualquer bandeira,...
vou fincar, aqui na praia,
minha alegria verdadeira .

Agite a Brisa as suas cores.
Dê-lhes o Sol mais vida ainda.
Não se esqueça neste arredores
outra bandeira tão linda .

Pode haver vendavais, ciclones ,
fúrias de águas
que a praia deixem combalida :
salva, mais alta do que as ondas, a bandeira,
Nossa Senhora Aparecida ,
dará coragem, fé sinais de terra,
aos que se apegam, ignorados
heróis marítimos, aos restos
de seus navios naufragados.

E os que pra sempre os olhos correm
hão-de ter tempo de a ver,
minha alegria posta ao alto :
e assim custa-lhes menos a morrer .

Não que a distingam bem : nela verão,
enquanto a vista lhes desmaia,
lenços de Irmãs, de Mães, de Esposas,
que lhes acenam na praia .
 

domingo, 16 de novembro de 2014

JUNTA DO MAR CANTA A CIGARRA



Junto do Mar canta a Cigarra.
Poema de Sebastião da Gama

Canta, p’ra iludir
a fome e a solidão;...
p’ra fingir que tem pão
e p’ra fingir que está acompanhada.

Tremeluzem os Astros no céu nítido:
Dona Cigarra faz serão.
Como há-de ela dormir, se a vida é curta?
Cigarra que se preza, quando morre
não deve estar a meio da canção.

Ninguém pára a saber por que é que canta.
Ninguém lhe dá ouvidos nem conforto.
Melhor, assim: assim, não perde tempo
quem não pode cantar depois de morto.

A parte que lhe coube por destino,
tem de morrer deixando-a já cantada.
Que faz que a não escutem nem lhe acudam?
É preciso é sentir que se está vivo.
É preciso é que as asas que sosseguem
o tenham merecido.

Canta a Cigarra à sombra da montanha
e à sua voz a solidão alastra,
deixa-a mais longe, sempre, dos que dormem.
Só a noite a entende e agasalha.
Mas a voz não acusa nem se cansa
nem laiva de azedume ou amargura.

Ei-la crucificada de indiferença.
Serve-lhe a Noite de mortalha.
Morno ainda do Canto,
seu coração evola-se em ternura
que vai poisar no sonho dos que dormem...”

sábado, 15 de novembro de 2014

A UMA RAPARIGA



A uma rapariga
Poema de Sebastião da Gama

Somos assim aos dezassete.
Sabemos lá que a Vida é ruim!...
A tudo amamos, tudo cremos.
Aos dezassete eu fui assim.

Depois, Acilda, os livros dizem,
dizem os velhos, dizem todos:
"A Vida é triste. a Vida leva,
a um e um, todos os sonhos."

Deixá-los lá falar os velhos,
deixá-los lá... A Vida é ruim?
Aos vinte e seis eu amo, eu creio.
Aos vinte e seis eu sou assim.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

PALAVRAS A FREI AGOSTINHO




PALAVRAS A FREI AGOSTINHO
Poema de Sebastião da Gama

Soubesse eu, Agostinho, aonde paira a tua alma ...
Não. não na quero amor-perfeito ou borboleta...
( só saudade e perfume )
espalmados entre as folhas do teu livro.
Não , não as quero assim torturadas ,
interrogante, trágica,
como ela está na letra dos teus versos.
Preciso é de alcançar-te em beatitude.
É a tua alma plena que eu procuro,
a tua alma liberta, não já tanto a nossa Irmã,
quanto a de quantos a Morte esclareceu .
Não é a alma viva da nossa vida
- que essa é por demais igual à nossa,
mas a tua alma vivada outra vida em que se fala
e em que tudo é simples e claríssimo
e não há incertezas, nem paixões, nem dramas.
Essa sim, só essa pode responder
às mil perguntas ( complicadas, escuras , doentes de incerteza e de paixão e drama )
que sem ordem acodem aos meus lábios.
Tu, ciente de todas as verdades,
tu, aureolado de todas as certezas,
cheio de graça e serenidade,
vem até mim, até ao labirinto
que aos poucos se me foi tornando a alma,
diz-me se vale ou se não vale a pena ,
afligir-me
e tenta perceber o que me aflige.
Que eu , não percebo apenas,
que desde que voltei os olhos para o Mundo
e tratei por Irmãs todas as coisas
Deus nunca mais desceu à minha casa .

E tu, Agostinho, descerás ?
 

terça-feira, 11 de novembro de 2014

ELA VEIO ...


ELA VEIO ( A Morte )
Poema de Sebastião da Gama
NOTA : Permitam-me uma nota . Este Poema publicado no Livro " Itinerário Paralelo " , não tem título . O manus...crito tem . Estou-o digitando com Dor e Respeito e, de momento, não me sinto com coragem de digitar mais Poemas .
O Poema
Como a Luz, como a Sombra, como a Vaga,
como a Noite ...
Foi assim que ela veio. Subtilmente
me enredou na volúpia misteriosa
das suas falas mansas quase mudas .
Não mais teve sentido o meu relógio.
Eram folhas no Outono as folhas brancas
do calendário.
Afogado e perdido sem remédio,
só me ficou de fora a mão direita
para deixar escritos estes versos .

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

MANHÃ NO SADO


"Manhã no Sado",
Poema de Sebastião da Gama

Brancas, as velas
eram sonhos que o rio sonhava alto....
Meninas debruçadas em janelas,
viam-se, à flor azul das águas, as gaivotas.
E a Manhã quieta (sorrindo, linda, vinha vindo a Primavera…)
punha os pés melindrosos entre as conchas.
Derivavam jardins imponderáveis
dos seus passos de ninfa
e tremiam as conchas
de súbitas carícias.

Longe era tudo: o medo dos naufrágios,
as angústias dos homens, o desgosto,
os esgares das tragédias e comédias
de cada um, os lutos, as derrotas.
Longe a paz verdadeira das crianças
e a teimosia heróica dos que esperam.

Ali, à beira-rio,
de olhos só para o rio, de ouvidos surdos
ao que não é a música das águas,
um sossego alegórico persiste.
Nem o arfar das velas o perturba.
Nem o rumor dos seios capitosos
da Manhã, que nas águas desabrocham
e flutuam, doentes de perfume.
Nem a presença humana do Poeta
- sombra que a pouco e pouco se ilumina
e se dilui, anónima, na aragem…

Sebastião da Gama

domingo, 9 de novembro de 2014

APONTAMENTO


Apontamento
Poema de Sebastião da Gama

É tão bom
Sentir a ventania lá por fora...
e a calma cá por dentro!...

Ou o contrário disto:
vento e raiva cá por dentro e, lá por fora, uma calma
que mais parece um gesto ou um olhar
de Cristo...

Ou, então,
chegar a esta confusão
de não saber se o vento é lá por fora
se é cá por dentro...

CANÇÃO DE MARINHEIRO


Canção de Marinheiro
Poema de Sebastião da Gama

Deixei no mar meu cachimbo,
minhas camisas de cor,...
os meus livros preferidos
e aquele beijo de Amor
que tu me deste à partida .

Deixei no mar quanto tinha ...
Deixei os remos, a vela,
e deixei o fio de ouro,
com medalhinha de prata.

Fui pobre, voltei mais pobre.
Deixei lá minha fortuna,
que era pouca e era muita,
porque era tudo que eu tinha .
-- Só não deixei minha boca,
para que falasse do Mar ...

Só não deixei os meus olhos,
para todos que nos virem
saberem que andei no Mar .

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

CANÇÃO INÚTIL


Imagem - Pintura de João Vaz

Canção Inútil
Poema de Sebastião da Gama
...
Nunca o Mar me quis ter nas suas ondas
enrolado e perdido.
Sou o Poeta das manhãs fecundas:
vivo me quer o Mar, para cantá-las
Ó Mar, onde se acaba
tudo que é vão!
Ó Mar feito do nada dos regatos
e dos rios efémeros!
Saibam minhas manhãs a maresia!
Haja ranger de cordas de navios
e searas de limos e de peixes,
haja a violência harmónica das ondas
nas manhãs que dão cor aos meus poemas!

Tudo fala verdade ao pé do Mar.
Mesmo as nuvens são velas que se rompem,
castigadas de um Sol que é vento puro
e que tem o direito de passar.
Andam gaivotas tontas à deriva
(acenos da ternura da Manhã…).
Tinem, nos estaleiros, marteladas.
E os motores monótonos, os gritos
dos homens e das aves, o inquieto
verbo do Mar, nas rochas espalmado
a todos os minutos, desde há séculos,
tudo revela a esplêndida verdade
de ao pé do Mar, em tudo que é do Mar,
a Vida estar desperta.

É o ar da Manhã, hálito alegre
do Mar, que enfuna as velas orgulhosas
desta canção poético-marítima.
Religiosamente aqui desfio
meu rosário de vagas.
Canção inútil!
Clarim que anunciou a Madrugada

depois de a Madrugada ter florido…

LÁ FORA É QUE SIM


Lá fora é que sim
Poema de Sebastião da Gama

Lá fora é que sim
me apetece estar...
Não ao pé do altar,
Virgem de Belém.

E se eu for lá para fora?...
amava-te igualmente...
só o modo era outro
de rezar e de ser crente.

Lá fora também andas...
Sem manto, sem coroa,
simples, Nossa Senhora!
Que mais linda és lá fora!...

Vais à fonte ( e eu a ver-te
entre as mais raparigas
-virgens, sem filhos essas)
encher a tua bilha.

Vais lavar o menino
mas a água é tão fria!...
queres que te acenda o lume,
Virgem Maria

CANÇÃO DA GUERRA


Canção da guerra
Poema de Sebastião da Gama

Aos fracos e aos covardes
não lhes darei lugar ...
dentro dos meus poemas.
Covarde já eu sou.

Fraco, já o sou demais,
e se entre fracos for
me perderei também.

Quero é gente animosa
que olhe de frente a Vida,
que faça medo à Morte.
Com esses quero ir,
a ver se me convenço
de que também sou forte.
Quero vencer os medos...
Vencer-me — que sou poço
de estúpidos terrores,
de feminis fraquezas.
Rir-me das sombras,
rir-me das velhas ondas
bravas, rir-me do meu temor
do que há-de acontecer.

Venham comigo os fortes...
Façam-me ter vergonha
das minhas covardias.
E de seus actos façam
(seus actos destemidos)
chicotes p’rós meus nervos.
Ganhe o meu sangue a cor
das tardes das batalhas.
E eu vá — rasgue as cortinas
que velam o Porvir.
Vá — jovem, confiado,
cumprindo o meu destino
de não ficar parado.

QUATRO MIL SOLDADOS


Quatro Mil Soldados
Poema de Sebastião da Gama

Ra ta plá ta plá
quatro mil soldados...
vão mecanizados
pela estrada fora.

Sereninha a hora,
manhã linda, linda,
mas os quatro mil
marcham indiferentes.

Ra ta plá ta plá
que bonito é!
Mas à volta há flores
e nenhum as vê.

Passam andorinhas,
dizem-lhes recados.
De olhos encantados,
passam raparigas.

Ondas lhes acenam.
Melros e pardais
fazem-lhes sinais
pela estrada fora.

Mas os quatro mil
vão mecanizados.
Passos acertados
pelo rataplã;

os ouvidos dados
só ao rataplã;
olhos cegos, cegos,
coração entregue

só ao rataplã
(Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá)

Que monotonia!
Que enfadonha letra!
Entretanto os melros
trinam de alegria.

Trinam, trinam, troçam.
─ Quatro mil soldados,
todos combinados,
negam a manhã!

Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá

À MEMÓRIA DE ALBERTO CAEIRO


À Memória de Alberto Caeiro
poema de Sebastião da Gama

Agora sim, que fechei o livro de Poesia.
O Sol deixou de ser uma metáfora para ser o Sol. ...
Os sentimentos deixaram de ser apenas palavras.
Tudo é de verdade, agora que fechei o livro de Poesia
[e olhei de frente quanto existe.

Porque diabo me ensinaram a ler?

(Se não soubesse ler nem sequer fechava o livro, insatisfeito porque o não tinha aberto.)
Porque me não deixaram sempre agreste e criança?
As minhas leituras seriam todas fora dos livros.
Havia de olhar para tudo com uma alegria tão grande, [com uma virgindade tão grande,
que até Deus sorriria contente de ter feito o Mundo

DEFESA


Defesa
Poema de Sebastião da Gama

O sol é meu e dos meninos ricos...
...
- Triste de quem não vê florir as rosas!
Triste de a quem somente foram dadas
ruas sombrias, lôbregos desvãos!

Ah!, mas não tenho culpa. Sou moreno,
sou forte, porque o sol me quer assim.
Digam ao sol, se entendem, que se esconda:
não me peçam a mim que esconda as mãos,
nem que neguem meus olhos e meus lábios
o milagre do Sol gostar de mim!

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

LOAS A NOSSA SENHORA DA ARRÁBIDA




Imagem do Círio de Nª Senhora da Arrábida
Igreja de S- Lourenço - Vila Nogueira de Azeitão

LOAS DO CÍRIO DA ARRÁBIDA
( atribuídas a Sebastião da Gama e Cantadas em alguns dos Círios que de Vila Nogueira chegaram à Arrábida )...

À Saída de Vila Nogueira

“ Vamos partir para onde
a Virgem Mãe nos espera,
sobre um altar tão florido
que parece a Primavera.

Por onde a gente passar
cheira a cravo, a rosmaninho,
que a Senhora vai à frente
p'ra nos abrir o caminho.

Falam melhor do que nós
os sinos, quando repicam,
da alegria dos que partem
da tristeza dos que ficam.

Quem foi que disse à Senhora
desta mágoa que me rala ?
- eu não gritei, não chamei,
mas veio sem eu a chamá-la.

À Chegada ao Convento

Cá vimos, Nossa Senhora
Pedir-Te, com voz sentida
que por nossa vida olhes
pois é Tua a nossa vida

Vai a gente envelhecendo,
que assim a vida o destina,
apenas Tu nunca perdes
esse Teu ar de Menina.
Tuas mãos, Virgem, são bênção
que só Tu nos sabes dar ;
uma a cair sobre a Terra
outra a cair sobre o Mar.

Nossa Senhora da Serra,
tem um ar tão bom, tão lindo,
que nem a gente percebe,
se chorais, se vais sorrindo.

Basta rezarmos baixinho
nos ouvires rezar,
o perto da nossa alma
este erguer teu altar.

À Despedida da Serra

Até p'ro ano Senhora !
Mas aqui Te prometemos
que até lá não haja um dia
em que nós Te não lembremos.

Já Te demos nossas graças
Nossa Senhora da Paz,
por tudo quanto nos deste,
pelo que ainda darás.

Falte-nos tudo Senhora
menos pão em nosso lar,
menos a voz na garganta
para sempre Te louvar.

Quantas velas acendi
quantas velas Te dirão
que há nas velas menos luz
do que há no meu coração.

à Chegada a Vila Nogueira

De pé de Nossa Senhora,
que contentes que nós vimos.
Sorriu-nos quando chegámos
beijou-nos quando partimos.

Ajoelhem, rezem todos,
mostrem a sua alegria
que a gente, p'ra quem não foi,
traz saudades de Maria.

A Senhora tinha giesta,
tinha cravos no altar,
tinha os nossos corações
que eram rosas de toucar.

Nossa Senhora é tão boa
que enquanto a gente saía
até as aves da Serra
cantavam "Avé Maria".

Se a gente souber pedir
o que a gente precisar
não há nada que a Senhora
seja capaz de negar.

Peçamos pois a Maria
que sempre seu lindo manto
nos agasalhe do frio
nos limpe os olhos de pranto

SONETO DO GUARDA-CHUVA


Soneto do Guarda-chuva
Poema de Sebastião da Gama

Ó meu cogumelo preto
minha bengala vestida...
minha espada sem bainha
com que aos moiros arremeto
.
chapéu-de-chuva, meu Anjo
que da chuva me defendes
meu aonde por as mãos
quando não sei onde pô-las
.
ó minha umbela – palavra
tão cheia de sugestões
tão musical tão aberta!
.
meu pára-raios de Poetas
minha bandeira da Paz,
minha Musa de varetas!”