terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

VIDA


Vida
Poema de Sebastião da Gama

Hoje, cá dentro, houve festa...
Alcatifei-me de veludo azul, ...
fiz pintar a Ternura os meus salões,
e pus cortinas de tule...
Mas não chamei grandes orquestras
nem um clarim, a proclamá-la:
mandei tocar, em mim,
uma música assim de procissão
que levou os meus sentidos
a nem sequer se sentirem, de embevecidos...

Hoje, cá dentro, houve festa...
E, se houve festa e veludos,
e musica azul, e tudo
quanto digo,
foi somente porque a Graça
desceu hoje a visitar-me.

E eu, que vivo de Infinito
as raras vezes que vivo;
eu, que me sinto cativo
no pouco espaço que habito,
onde a presença de dois,
por ser demais, me embaraça,
deixei logo o meu lugar,
para dar lugar à Graça.

Não tinha pés: tinha passos;
não tinha boca: era beijos;
não tinha voz: era como
se o folhado e a maresia
se tivessem combinado
pra cantar «Ave, Maria...»

Foi então que vivi; então que vi
os poucos metros que vão
da minha Serra às Estrelas:
é que eu, sendo tão pequeno
que nem às vezes me encontro,
andava ali a pairar,
e o meu fim estava nelas
e o meu princípio no Mar.

A Graça, cá dentro, era
a varinha de condão
que me guiava no Ar.
E que bem me conduzia!
Parecia que eu sentia
as mesmas ânsias e a alegria
da Noite quando, no ventre,
já sente os gritos do Dia.
E eu me vi (que não sei bem
se era eu ou se era a Graça
quem p’los meus olhos olhava);
e eu me vi, que me tomava
em tons de rosa esmaiada
—barra da saia da Tarde
que ainda bem não morreu
e já de si tem saudades;
e fui murmúrio do Mar
que reza o que eu lhe ensinei;
e fui perfume exalado
dos matos da minha Serra
— perfume que, modelado
às formas que tens, sem tê-las,
mostrou teu corpo perfeito:
esse perfume que eu era
desenhava-te o perfil;
por olhos, tinhas Estrelas;
meu carinho de pensar-te
era a curva do teu peito.

E a minha varinha maga
do perfume fez um grito
da Serra, ébria de si;
e eu, nesse grito, subi;
bati às portas do Céu,
mas era cedo demais
e caí.

Para pairar, em poalha
que não é oiro, mas sim
a palavra com que Deus
fechou-me as portas do Céu;
beijo a minha criação
quando beijo a minha Serra;
sou passadeira de mim
e nego, na Luz que sou,
que seja feito de terra.

Ai quem me dera morrer!
Liberto do que não sou,
viver a única vida
pra que Deus me destinou!
Dá-me a vida que me mate, Senhor!
Fica-me dentro pra sempre,
a guiar-me pelo Além!

E tu perdoa, se eu morro,
que é p’ra nascer, minha Mãe!

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

PORTA ABERTA


Porta Aberta
Poema de Sebastião da Gama

Hoje, não !
Deixem-me estar aqui, sossegadinho,...
tomando o gosto às minhas Alegrias .
Há tantos outros dias
em que podem chamar-me !
E tantos, tantos,
em que tenho desejo de me dar
( Mais que desejo : sede ... )
sem que ninguém repare nos meus olhos
cansados de pedir !
Amanhã ou depois -- quando quiserem ...
Hoje, deixem-se só,
na paria , recolhido .
É tão grande este dia para mim ! ...
Mas se eu ouvir chorar ?
mas se eu vir criancinhas
com as mãos estendidas e uma queixa
na palidez precoce de um sorriso ?
Mas se homens tristes ...

Perdoai ! perdoai !, que me esquecia
de vós.
como se para vós o dia de hoje
não fosse um dia igual aos outros dias ! ...

sábado, 7 de fevereiro de 2015

CORTINAS



CORTINAS
Poema de Sebastião da Gama

Que a Morte, quando vier,
não venha matar um morto....
Quero morrer em pujança.
Quero que todos lamentem
a ceifa de uma esperança

- não sendo eu já de mim
nem de meu sonho também,
mas sendo um sonho já deles ;
já tão deles que hão-de crer
que o levantaram , tão seu
que, ao secar, lhes vai doer
e vai deixar
pedaços vivos nas mãos
( cristais quebrados rasgando-as ),
saudades vivas no olhar .

Quero morrer com os dedos
a quatro dedos do Céu,
pra que depois pensem que eu
só por morrer não cheguei,
só não cheguei por tração
( pra que não saibam que a Morte
foi a minha salvação )

Ai medo antigo que eu tenho
e só a mim, que entendo,
posso contar à vontade
não de o Céu não ser verdade
( meu sonho astral é tão grande
que, nem que fosse vazio,
meu sonho havia de encher
de céu
esse vazio sem fundo )
mas de se as asas partirem
antes do pano descido,
à vista de todo o mundo..

Como há-de ser bom morrer ,
suspenso lá nas alturas ! ...
Não vir cair na calçada,
de cabeça esmigalhada,
com lama, em sangue lavada,
nas mãos torcidas mas puras ! ...

Como há-de ser bom, não ser
preciso o Anjo descer
a este mundo
pra me levar ao meu fim !...
- Sem Se Deus bulir do Trono,
estende-me Sua Mão
e ao pé d'Ele logo estou :
que fique logo transporta
aquela mão de Infinito
que me faltou ;
que me faltou, mas baldou,
o medo antigo que eu grito .

Por isso, que a Morte seja
a força
que me não deixe cair
e se confunda
na mesma que me subiu.
Que eu morre em Glória prós meus
pobres irmãos , enlevados
em barata pasmaceira .
Que, quanto à Glória que eu quero
minha Glória verdadeira,
isso é comigo e com Deus ...

...e com Alguém
que é bem de mim, como eu sou,
e vive pra me encontrar,
porque os caminhos são tais
- pronde vem e pronde vou -
que, mesmo assim desiguais,
hão-de ter um certo sítio
em que passem de um só .

EM MEMÓRIA DO PROFESSOR E AMIGO








A 7 de Fevereiro morre em Lisboa, o poeta, professor e pedagogo Sebastião da Gama (1924-1952), natural de Azeitão. Licenciado em Filologia Românica, foi professor do Ensino técnico em Lisboa, Setúbal e Estremoz. Atingido pela tuberculose, foi viver para a Arrábida a conselho médico. A sua obra encontra-se ligada à Serra da Arrábida, onde vivia e que tomou por motivo poético de primeiro plano e à s...ua tragédia pessoal, motivada pela doença que o vitimou precocemente.
OBRAS: Serra-Mãe (poesia, 1945); Loas a Nossa Senhora da Arrábida (poesia, 1946); Cabo da Boa Esperança (poesia, 1947); O Segredo é Amar (1969); A Região dos Três Castelos (prosa, 1949); Campo Aberto (poesia, 1951); Pelo Sonho é que Vamos (1953); Diário (1958); Itinerário Paralelo (compilação de David Mourão-Ferreira, 1967); Cartas I (1994).