sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

A UMA RAPARIGA



A uma rapariga
Poema de Sebastião da Gama

Somos assim aos dezassete.
Sabemos lá que a Vida é ruim!...
A tudo amamos, tudo cremos.
Aos dezassete eu fui assim.

Depois, Acilda, os livros dizem,
dizem os velhos, dizem todos:
"A Vida é triste. a Vida leva,
a um e um, todos os sonhos."

Deixá-los lá falar os velhos,
deixá-los lá... A Vida é ruim?
Aos vinte e seis eu amo, eu creio.
Aos vinte e seis eu sou assim.

MANHÃ NO SADO


"Manhã no Sado",
Poema de Sebastião da Gama

Brancas, as velas
eram sonhos que o rio sonhava alto....
Meninas debruçadas em janelas,
viam-se, à flor azul das águas, as gaivotas.
E a Manhã quieta (sorrindo, linda, vinha vindo a Primavera…)
punha os pés melindrosos entre as conchas.
Derivavam jardins imponderáveis
dos seus passos de ninfa
e tremiam as conchas
de súbitas carícias.

Longe era tudo: o medo dos naufrágios,
as angústias dos homens, o desgosto,
os esgares das tragédias e comédias
de cada um, os lutos, as derrotas.
Longe a paz verdadeira das crianças
e a teimosia heróica dos que esperam.

Ali, à beira-rio,
de olhos só para o rio, de ouvidos surdos
ao que não é a música das águas,
um sossego alegórico persiste.
Nem o arfar das velas o perturba.
Nem o rumor dos seios capitosos
da Manhã, que nas águas desabrocham
e flutuam, doentes de perfume.
Nem a presença humana do Poeta
- sombra que a pouco e pouco se ilumina
e se dilui, anónima, na aragem…

Sebastião da Gama

RELATÓRIO


Imagem - Pintura de João Vaz
Relatório
Poema de Sebastião da Gama

Vou pelo Mar e levo enclavinhados...
os dedos num pedaço de madeira.
É da quilha, dos remos, ou do mastro?
Seja de aonde seja, se me ensina
que não desisto ainda de ir no Mar…

O’ glória de saber que o Mar termina
onde a minha coragem se acabar,
a ti dou quanto é meu!
Glória de por meus nervos garantir
o direito de escarnecer da Morte

quando a Morte julgar que me venceu!

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

ITINERÁRIO


Itinerário
Poema de Sebastião da Gama

Meu caminho é por mim fora,
até chegar ao fim de mim...
a encontrar-me com Deus ...

Mas lá no fim
eu vou sentir-me tão outro.
tão igual
ao Senhor Deus que ali mora,
que hei-de ficar convencido
de que afinal
só Tu, Senhor, lá estás
e que eu fiquei para trás,
de cansado ou de perdido
no meu caminho comprido .

É só por mim é que eu vou
e as bermas do meu caminho,
são as passadas que dou .

E não me digam que não,
que eu não me importo de ir só ;
minha Esperança, na minha
voz comovida espelhada,
sabe encher a solidão
das curvas mudas da estrada .

HORA VERMELHA


Hora Vermelha
Poema de Sebastião da Gama

Por que vieste, pensamento?
Já me bastava o Mar violento,...
Já me bastava o Sol que ardia…
P’los meus sentidos escorria
não sei lá bem que seiva forte
que a carne toda me deixava
qual uma flor ou uma lava
num riso aberto contra a Morte.

Já me bastava tudo isto.
Mas tu vieste, pensamento,
e vieste duro, turbulento.
Vieste com formas e com sangue:
erectos seios de mulher,
as carnes róseas como frutos.

Boca rasgada num pedido
a que se quer e se não quer
dizer que não.
Os braços longos estendidos.
A mão em concha sobre o sexo
que nem a Vénus de Camões.

Aí!, pensamento,
deixa-me a calma da Poesia!
Aqui na praia só com ela,
virgem castíssima, sincera!…
Sua mão branca saberia
chamar cordeiro ao Mar violento,
Pôr meigo, meigo, o Sol que ardia.
Mas tu vieste, pensamento.
Tua nudez, que me obsidia,
logo, subtil, encheu de alento
velhos desejos recalcados,
beijos mordidos
antes de os ver a luz do Dia.

Vai-te depressa, pensamento!
Deixa-me a calma da Poesia.
Fique em minh’alma o só perfume
da cerca alegre de um convento.

Os meus sentidos embalados
numa suave melodia.
(Ah!, não nos quero desgrenhados
como quem volta de uma orgia).

E então meus lábios mais serenos
do que se orassem sobre um berço,
sorrindo à Vida,
sorrindo à Morte.
Ah!, não nos quero assim grosseiros,
ébrios, torcidos,
como depois de um vinho forte.

OBSESSÃO


Obsessão
Poema de Sebastião da Gama

Quero a Noite completa, desumana.
A Noite anterior. A Noite virgem ......
de mim. A Noite pura. Quero a Noite,
aonde é impossível encontrar-te.

Que não há rio nem rua nem montanha
nem floresta nem prado nem jardim
nem pensamento algum nem livro algum
em que não me apareças, sorridente.
 

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

CANÇÃO DA FELICIDADE


CANÇÃO DA FELICIDADE
Poema de Sebastião da Gama
( Imagem " Rosa Albardeira" )

... Pois à minha vida...
nada lhe faltava.
Minha taça estava
toda ela cheia.

Nem fazia ideia
que pudesse haver
mais algum prazer
que aquele que eu tinha.

Pela manhãzinha
pela tarde quente,
ninguém mais contente
pela rua andava.

As mãos, se as fechava,
as mãos, se as abria,
tudo quanto havia
tudo havia nelas.

Não pedia Estrelas,
não pedia flores,
não pedia amores,
porque os tinha já.

Que de enigmas há!
Como a Vida tem
coisas que a ninguém
passam p’la cabeça!

Antes que me esqueça
deixem-me contar:
hoje fui passear,
manhãzinha ainda,

e vi a mais linda
de todas as rosas:
pétalas sedosas,
vermelhas, brilhantes...

E eu, que tinha dantes
quanto me bastava,
nada me faltava
para ser feliz,

eu, que nunca quis
mais do que me deu
o favor do Céu
e o da humana gente,

fiquei tão contente
como se essa rosa
fosse misteriosa
flor que eu desejasse;

como se andasse
à procura dela
por faltar só ela
para ser feliz...
 

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

SEM TÍTULO


Sem Título
Poema de Sebastião da Gama

A cada verso nasço ...
É cada verso o meu primeiro grito...
à Vida ...

Depois, Se caminho apalpando e aos tombos,
e se, aflito não atino e me perco até de mim .
- é que, os raios do Sol cegaram, despiedados,
meus olhos mal abertos , costumados
à escuridão do ventre de onde vim .

AVÉ MANHÃ


« Avé, Manhã ... »
Poema de Sebastião da Gama

A Manhã de hoje, branda,
parece Nossa Senhora ... ...

Cantem-lhe os outros verso bem rimado...
- Eu , cá por mim, humilde , mais não sei
que continuar aqui ajoelhado ...

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

SEM TITULO 2




Sem Título 2.

Da minha janela
vê-se a Poesia.
Não te digo, não,...
se é bonita ou feia,
se é azul ou branca,
nem que formas tem.
Queres conhecê-la?
Deixa o teu bordado,
vem para o meu lado,
que já podes vê-la
com teus próprios olhos.

Da minha janela
vê-se a Poesia...
Outro que te diga
se é bonita ou feia.

Sebastião da Gama

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

ELA VEIO ...


ELA VEIO ( A Morte )
Poema de Sebastião da Gama

NOTA : Permitam-me uma nota . Este Poema publicado no Livro "Itinerário Paralelo " , não tem título . O manuscrito tem . Estou-o digitando com Dor e Respeito e, de momento, não me sinto com coragem de digitar mais Poemas .
...
O Poema

Como a Luz, como a Sombra, como a Vaga,
como a Noite ...
Foi assim que ela veio. Subtilmente
me enredou na volúpia misteriosa
das suas falas mansas quase mudas .
Não mais teve sentido o meu relógio.
Eram folhas no Outono as folhas brancas
do calendário.
Afogado e perdido sem remédio,
só me ficou de fora a mão direita
para deixar escritos estes versos .

OBCESSÃO


Obsessão
Poema de Sebastião da Gama

Quero a Noite completa, desumana.
A Noite anterior. A Noite virgem ......
de mim. A Noite pura. Quero a Noite,
aonde é impossível encontrar-te.

Que não há rio nem rua nem montanha
nem floresta nem prado nem jardim
nem pensamento algum nem livro algum
em que não me apareças, sorridente.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

FLORBELA


Florbela
(em sua memória)

Sou eu, Florbela! Aquele que buscaste.
Falam de mim Teus versos de Menina....
Tua boca p'ra mim se abriu, divina,
mas foi só o Luar que Tu beijaste.

Hás-de voltar, Florbela!… Em débil haste,
por entre os trigos cresce, purpurina,
a mais fresca papoila da campina
que, só por me veres, não cortaste.

Eu tenho três mil anos: sou Poeta.
Surgi dos lábios secos dum asceta,
de uma oração que Deus deixou de parte.

Redimi tantos corpos, tantas vidas
neles vivi, que sinto já nascidas
asas com que subir para alcançar-Te

PELO SONHO É QUE VAMOS


Pelo Sonho é que vamos ...

Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos, não chegamos?...
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.
Chegamos? Não chegamos?
Partimos. Vamos. Somos.

Sebastião da Gama

LARGO DO ESPÍRITO SANTO , 2 2º


Largo do Espirito Santo, 2, 2º
Poema de Sebastião da Gama

Nem mais, nem menos: tudo tal e qual
o sonho desmedido que mantinhas....
Só não sonharas estas andorinhas
que temos no beiral.

E moramos num largo... E o nome lindo
que o nosso largo tem!
Com isto não contáramos também.
(Éramos dois sonhando e exigindo).

Da nossa casa o Alentejo é verde.
É atirar os olhos: São searas,
são olivais, são hortas ... E pensaras
que haviam nossos de ter sede!

E o pão da nossa mesa! E o pucarinho
que nos dá de beber!... E os mil desenhos
da nossa loiça: flores, peixes castanhos,
dois pássaros cantando sobre um ninho...

E o nosso quarto? Agora podes dar-me
teu corpo sem receio ou amargura.
Olha como a Senhora da moldura
sorri à nossa alma e à nossa carne.

Em tudo, ó Companheira,
a nossa casa é bem a nossa casa.
Até nas flores. Até no azinho em brasa
que geme na lareira.

Deus quis. E nós ao sonho erguemos muros,
rasguei janelas eu e tu bordaste
as cortinas. Depois, ó flor na haste,
foi colher-te e ficamos ambos puros.

Puros, Amor — e à espera.
E serenos. Também a nossa casa.
(Há de bater-lhe à porta com a asa
um anjo de sangue e carne verdadeira).

SONETO DE ANTÓNIO


Soneto de António

António! dorme... Já se acabou a tosse.
Não mais ocultarás os teus soluços,
quando passarem rapazes...
com os lábios vermelhos e saudáveis.

Dorme... Carlota vela à tua cabeceira.
("Ia tão seco o meu querido Menino!...
Mas toda a gente agora fala dele;
que foi um grande Poeta ou lá o que é").

Ouve António: sempre é verdade a Lua Nova?
E os Anjinhos? E a tua
Nossa Senhora linda?

- Diz-me que sim, mesmo se for mentira...
Eu acredito, eu acredito, António!,
e é por isso que vou vivendo ainda.

Sebastião da Gama

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

ORAÇÃO DA TARDE


Oração da Tarde
Poema de Sebastião da Gama

Ao crepúsculo, a Serra é catedral
onde o Órgão-Silêncio salmodia....
A própria Luz ergueu « Ave-Maria»
e o Mar tomou as cores de um vitral.

To sente o Senhor e se extasia ...
O Sol queimou os matos pelo Vale
e desprendeu incenso, Espiritual
é mãos-postas a rude penedia.
E eu também quero ser da Oração ...
- Com folhados na alma, pus a mão
na minha harpa e a música ascendeu

Ai a minha alegria-de-menino,
quando, por só, então, se ouvir no Céu,
ajoelhado, deixei de ouvir meu hino ! ...

LÍRICA


Lírica
Poema de Sebastião da Gama

Lá vem nascendo a Manhã ...
...
(Lá estou eu no berço ...
sonhando e sorrindo lindo,
e a minha mãe a beijar-me
e o seu beijo a não ser mais
que o acidente mais lindo
do sonho lindo que eu sonho ... )

ROMANCE


Romance
Poema de Sebastião da Gama

Era uma vez nós os dois ...
...
Comungámos os dois solenemente,
mas a hóstia desfez-se-nos na boca,
porque era pó, pó como a gente .

Bebemos Sol p'la mesma taça clara,
pra vencermos, na grande Linha Recta,
os pasmos as fraquezas e os medos.
E a taça esmigalhou-se em nossos dedos ...
Depois ...
os dedos nem sequer deitaram sangue,
porque éramos mentira nós os dois .

( In Itinerário Paralelo )

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

HARPA


HARPA
Poema de Sebastião da Gama

Olha, Senhor!,
o indigno cantor que Tu fadaste...
e se não pode erguer
à sua própria altura!...

- Virgem das minhas mãos, a Harpa acende
novos brilhos no Sol, traduz em cor
a saudade dos sons que não desprende...
Tu a fizeste, Deus!, para os meus dedos;
a glória do Teu gesto criador
Tu a quiseste partilhar
na glória quase igual de o entender.

E foi com Teu amor que retesaste as cordas,
com Teu amor as afinaste
e me chamaste
à tarefa sublime de tangê-las.

E eu sinto o Frémito, Senhor!
Sinto o sopro que Tu me inoculaste
ao dar-me a Tua bênção.
Dentro de mim é Som: o eco longo
de uma nota sem fim e sem começo.

Mas só cá dentro o Frémito ressoa...
Que não consegue minha mão,
que o lodo fez e o lodo maculou,
passar à Harpa a Grande Vibração.

- Vem lavar-me, Senhor!, no azul do Mar.
Filtra a minha impureza na limpidez do Teu olhar,
a luz clara que entornas pelos montes da minha Serra verde.

Deixa outro cantar meu próprio Canto,
e seja eu somente, assim purificado
e liberto do corpo, enfim, mais uma corda
na Harpa que me tinhas destinado.

Ai o cantor indigno que fadaste!...
Ai que a Grande Vibração,
se o não redimes,
estéril morrerá...

- Que eu seja apenas Som que um outro cante
e, na renúncia de mim,
igual a mim um dia me alevante!...

ORAÇÃO DE TODAS AS HORAS


Oração de Todas as Horas

Agora,
que eu já não sei andar nas trevas,
não me roubes a Tua Mão, Senhor,...
por piedade!
Voltar às trevas não sei,
e sem a Tua Mão não poderei
dar um só passo em tanta Claridade.

Pelas Tuas feridas minhas, pelas tristezas
de Tua Mãe, Jesus.
não me deixes, no meio desta Luz,
de pernas presas...

Não me deixes ficar
com o Caminho todo iluminado
e eu parado e tão cansado
como se fosse a andar ...

Sebastião da Gama

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

A UMA RAPARIGA



A uma rapariga
Poema de Sebastião da Gama

Somos assim aos dezassete.
Sabemos lá que a Vida é ruim!...
A tudo amamos, tudo cremos.
Aos dezassete eu fui assim.

Depois, Acilda, os livros dizem,
dizem os velhos, dizem todos:
"A Vida é triste. a Vida leva,
a um e um, todos os sonhos."

Deixá-los lá falar os velhos,
deixá-los lá... A Vida é ruim?
Aos vinte e seis eu amo, eu creio.
Aos vinte e seis eu sou assim.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

MADRIGAL


Madrigal

A minha história é simples.
A tua, meu Amor,
é bem mais simples ainda:...

"Era uma vez uma flor.
Nasceu à beira de um Poeta..."

Vês como é simples e linda?
(O resto conto depois;
mas tão a sós, tão de manso
que só escutemos os dois).

Sebastião da Gama

IMAGEM


IMAGEM
Poema de Sebastião da Gama

Ó corpo feito à imagem
de meu desejo e meu amor, ...
que vais comigo de viagem
p’ra onde eu for,

que mar é este em que andamos,
há três noites bem contadas
e não tem ventos nem escolhos
nem ondas alevantadas?

que sol é este, que aquece,
mas sereno, tão sereno,
que nem te põe menos branca
nem a mim põe mais moreno?

que paz é esta, nas horas
mais violentas e bravas?
(Sorrias: ias falar.
sorrias e não falavas.)

que porto é este? esta ilha?
que terra é esta em que estamos?
(Era uma nuvem, de longe...
Deixou de o ser, mal chegámos.)

e este caminho, onde leva?
e onde acaba este jardim
que é tão em mim que é em ti?
que é tão em ti que é em mim?...

Ó alma feita à imagem
do sonho que me desmede
— que sede é esta que temos
que é mais água do que sede?

(in Sonho, 47)

NUNCA O AMOR FOI BREVE


NUNCA O AMOR FOI BREVE
Poema de Sebastião da Gama

Nunca o Amor foi breve,
quando deu fruto....
(Cantai, aves do ar,
em volta de seu berço!)

Sagre-o a Dor, nenhum Amor é vão.
Exulta, voz das ondas!
- O seu Amor floriu, deu fruto,
como as árvores.

Cantai, aves do ar,
em volta do seu berço.
Cintilantes do Sol, saltai ao Sol,
peixes do Mar.

Nunca o Amor foi triste. Nem a Vida
foi menos bela.
Baila contente, lágrima!,
baila nos olhos dela.