CARTA DE GUIA
Poema de Sebastião da Gama
Mesmo com este calor eu quero ir.
Aos tropeções, aos bordos, de qualquer maneira,...
porque há pessoas que estão à minha espera
e que nasceram pra eu me importar com elas.
Há vinte e dois anos que estou a falar de mim
e hei-de falar de mim a vida inteira:
tanta coisa que eu tenho para dizer,
e passar ao papel!
A anatomia da minha alma, principalmente,
que há-de ficar escrita,
pra que vejam como é esquisito um homem por dentro.
Mas agora, neste momento,
e noutros iguaizinhos a este,
ponho de parte o binóculo com que me espreito
e graças ao qual tudo o que em mim é pequeno me parece grande
e vou prà frente, apesar do calor,
apesar de ir como um bêbado.
Há mãos estendidas, lábios secos.
Casas aonde o Sol tem pudor de entrar, de tão infectas.
Aonde Deus taparia o nariz, se chegasse à porta.
Quando as palavras são como pensos de linho,
não há nada melhor para a alma, feita de carne em chaga de um homem.
Por isso é que vou indiferente a este calor de Junho.
O binóculo fica à espera.
Eu fico à espera.
Largo barcos e redes,
não aconteça que os outros todos que estão à minha espera
tenham morrido já, quando eu chegar,
ou já não tenham ouvidos para as minhas palavras,
nem lábios que percebam
a frescura de água que eu levar...
Poema de Sebastião da Gama
Mesmo com este calor eu quero ir.
Aos tropeções, aos bordos, de qualquer maneira,...
porque há pessoas que estão à minha espera
e que nasceram pra eu me importar com elas.
Há vinte e dois anos que estou a falar de mim
e hei-de falar de mim a vida inteira:
tanta coisa que eu tenho para dizer,
e passar ao papel!
A anatomia da minha alma, principalmente,
que há-de ficar escrita,
pra que vejam como é esquisito um homem por dentro.
Mas agora, neste momento,
e noutros iguaizinhos a este,
ponho de parte o binóculo com que me espreito
e graças ao qual tudo o que em mim é pequeno me parece grande
e vou prà frente, apesar do calor,
apesar de ir como um bêbado.
Há mãos estendidas, lábios secos.
Casas aonde o Sol tem pudor de entrar, de tão infectas.
Aonde Deus taparia o nariz, se chegasse à porta.
Quando as palavras são como pensos de linho,
não há nada melhor para a alma, feita de carne em chaga de um homem.
Por isso é que vou indiferente a este calor de Junho.
O binóculo fica à espera.
Eu fico à espera.
Largo barcos e redes,
não aconteça que os outros todos que estão à minha espera
tenham morrido já, quando eu chegar,
ou já não tenham ouvidos para as minhas palavras,
nem lábios que percebam
a frescura de água que eu levar...
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