sábado, 12 de julho de 2014

CARTA DE GUIA

CARTA DE GUIA
Poema de Sebastião da Gama

Mesmo com este calor eu quero ir.
Aos tropeções, aos bordos, de qualquer maneira,...
porque há pessoas que estão à minha espera
e que nasceram pra eu me importar com elas.
Há vinte e dois anos que estou a falar de mim
e hei-de falar de mim a vida inteira:
tanta coisa que eu tenho para dizer,
e passar ao papel!
A anatomia da minha alma, principalmente,
que há-de ficar escrita,
pra que vejam como é esquisito um homem por dentro.

Mas agora, neste momento,
e noutros iguaizinhos a este,
ponho de parte o binóculo com que me espreito
e graças ao qual tudo o que em mim é pequeno me parece grande
e vou prà frente, apesar do calor,
apesar de ir como um bêbado.
Há mãos estendidas, lábios secos.
Casas aonde o Sol tem pudor de entrar, de tão infectas.
Aonde Deus taparia o nariz, se chegasse à porta.
Quando as palavras são como pensos de linho,
não há nada melhor para a alma, feita de carne em chaga de um homem.
Por isso é que vou indiferente a este calor de Junho.
O binóculo fica à espera.
Eu fico à espera.
Largo barcos e redes,
não aconteça que os outros todos que estão à minha espera
tenham morrido já, quando eu chegar,
ou já não tenham ouvidos para as minhas palavras,
nem lábios que percebam
a frescura de água que eu levar...

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